- Rui, havias de ver, quem havia de dizer que sou uma flor de história feita?! Dentro do que perguntavam, andei pelo que tinha uma ideia e inventei aquilo que me parecia que, se não aconteceu, deveria ter acontecido. No bloco optativo, fui pelos Descobrimentos Portugueses.
Painéis de S. Vicente de Fora - Nuno Gonçalves |
De facto, é nos blocos (de gelo) onde estou (e estive) mais à vontade. Que isto de russos e americanos é como gregos e troianos. A diferença é que, enquanto os últimos foram à luta movidos por uma romântica história de amor, aos primeiros só o interesse económico e bélico os movia. E em se tratando de economia e logística, a orquídea tem um sentido analítico e metódico muito apurado. Talvez não pareça, pelo seu toque suave e aveludado, mas isso é só à superfície. Bem... até ver nunca é tarde. Como, mal ou bem, fizemos, por norma, não somos excluídos da oral.
Que não se fez esperar. E uma oral sempre foi a fogueira. Ou não! Exceptuavam-se os casos raros, como raríssimas as orais efectuadas, em que a habilidade, nascida da curiosidade genuína por saber mais, tinha o dom de inverter as funções: punha o examinando a responder às perguntas da examinada. Examinando, claro, masculino. Examinanda tinha um crachá: BARREIRA!
Uma incógnita era um duo de examinandos misto. Feminino para a História, masculino para a Política. E ainda havia muito a excluir. De um vasto jardim inicial, que a Língua Portuguesa tinha mondado até ao nível mais alto, restava um canteiro. Pequeno. Mesmo assim sabíamos que as suas dimensões seriam ainda mais, muito mais, reduzidas. Na terra prometida haveria lugar só para mais dois (ou três?) exemplares.
Uma vantagem de ter um nome começado por uma letra constante para lá de metade do alfabeto é ser das últimas a ser chamada nas provas orais e, assim, ter a oportunidade de assistir às prestações anteriores. Dá um certo à vontade e familiaridade com o ambiente. Implicava, porém, no caso, ter de passar a noite em Lisboa.
Banhistas na Margem de Um Rio - Henri Matisse |
Conhecemo-nos na Heart Rock. Festejava-se a Revolução dos Cravos na disco-night. Com uns dias de antecipação para coincidir com o fim de semana. O som era do satânico Nick Cave. A parede do palco servia de tela para a exibição da pintura de Matisse, alternada com o design da Bauhaus. Do andar superior alguns presentes, (ainda) alheios à pista de dança, assistiam a esta projecção.
Aí estava, também, uma orquídea - azul, nessa noite - tão resistente como o conjunto jeans, Absinto, deslavado, que envergava. Dois palmos de saia unidos por um éclair, estrategicamente posicionado na dianteira, diagonalmente, a todo o reduzido comprimento, de cima a baixo, não corrido completamente para que permitisse dar passos de gente, à medida da perna. Um blusão/top, de manga comprida e trespasse. Fechado, também, por um éclair no ombro esquerdo e quatro botões metálicos com uma lira em relevo: dois na cinta e dois nos ombros. Ambas as peças, saia e blusão, debruadas no topo com crepe de seda, quadriculado e trincado. Cinto preto a pender, a toda a largura da anca: duas tiras, três quartos abertas em tiras mais estreitas e um quarto cravejado de esmeraldas e rubis (pois, bijouterie), unidas ao centro por um hexágono de bolinhas douradas. Fechavam, atrás, com uma fivela. Scarpins pretos, Italus, tacão latino (2-3 cm de altura) e bolsa/saco preta de franjas. Atenta. Procurando o melhor ângulo de visão que um cavalheiro solícito, gentilmente lhe cedeu à sua frente, não perdendo a oportunidade de entabular conversa. Valeu-lhe a mini-saia que, por norma não combina com tacões (altos) - sente-se meia garça - não ficando, assim, mais alta do que ele.
Caiu bem - o terreno andava a tender p'ro árido a nível de cabeças pensantes. Depressa descobrimos várias amizades comuns. Pontos e caminhos que se cruzavam: na electrónica e na política, designadamente. Não que a orquídea percebesse alguma coisa de ondas hertzianas ou fosse fanática da social-democracia. Contudo, por força das circunstâncias profissionais, estava embrenhada no ramo eléctrico-electrónico; a social-democracia, de então, tinha sido uma resposta natural aos radicalismos pós-25 de Abril. Ele andava a preterir os condensadores, as resistências e os cabos eléctricos, os transistores e os circuitos integrados, pelas reuniões e manifestações partidárias. A engenharia electrotécnica pela política local - limiana - e o cargo de Delegado Regional do Instituto Português da Juventude (IPJ).
Daí as idas e vindas aos centros de decisão política da capital serem constantes, para além, talvez, de serem facilitadas pelo paladar aguçado desses meios. Aliás, está demonstrado o seu bom gosto. Quiçá não em tudo, claro, mas, pelo menos, no que a queijo flamengo diz respeito - a bolinha vermelha, nascida em 1959. O Limiano! Excelente. Sabor suave e textura amanteigada. Produto gourmet que veio para ficar. De tal forma que, na capital, viria até a servir para voltar aos tempos ancestrais da troca directa...
De qualquer maneira, nesse dia, muito provavelmente, haveria coincidência de agenda. Regressaria ao Minho com a companhia de uma flor.
Nicola-Pr. D. pedro IV(Rossio) - Lisboa |
Estátua de Bocage-Nicola/Escultura de Marcelino de Almeida |
O Café Nicola, sendo um dos estabelecimentos mais antigos e mais frequentados da Lisboa de finais do séc. XVIII - fundado no Rossio, em 1787, pelo italiano Nicola Breteiro -, já foi ponto de encontro, de partida e de chegada de movimentos socio-culturais e políticos. Como local de debate literário por excelência, teve por frequentador mais ilustre Manuel Maria Barbosa du Bocage(*).
Conta-se, até, que um dia, em frente ao Nicola, Bocage foi interpelado por um polícia que lhe perguntou quem era, donde vinha e para onde ia. O poeta a quem, porventura, a boémia e a aventura tinham feito satírico e espirituoso, não se escusou a prontamente responder:
"Eu sou Bocage
Venho do Nicola
Vou p'ro outro mundo
Se dispara a pistola".
Quadro de Fernando Santos - Café Nicola
Auto-retrato
Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;
Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos, por taça escura,
De zelos infernais letal veneno;
Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades,
Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades,
Num dia em que se achou mais pachorrento.
- Bocage
BC/
(*) - Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage (Setúbal, 15 de Setembro de 1765 - Lisboa, 21 de Dezembro de 1805). Poeta, possivelmente, o maior representante do arcadismo lusitano. Embora ícone deste movimento literário, é uma figura inserida num período de transição do estilo clássico para o estilo romântico que terá forte presença na literatura portuguesa do séc. XIX. (Wiki)